quarta-feira, 8 de novembro de 2017

EU SOU O MEIO



Uma câmera na mão, uma ilha e um único sentimento: o fascínio pelas belezas e talentos de nossa terra. Essa é a proposta do Babitonga Sessions, onde artistas locais mostram obras de sua autoria em um cenário espetacular: A cidade de São Francisco do Sul - SC.
Nesta Session, Clô Zingali nos encanta, inspira e nos faz refletir recitando seu texto "Eu Sou o Meio". 

terça-feira, 31 de outubro de 2017

PROSA DESARTICULADA EM SI MAIOR



se de acaso em acaso respiro e transpiro, virada em palavra sigo dentro de um tempo que me soa agora mais determinado. 

em meio ao que me varre e assusta deparo com a ideia de esvair e secar. da profusão de um mergulho na cheia da maré; da composição, da melodia e de juntar as coisas segundo um critério. 

em meio ao que me voa e assombra deparo com um olhar.  a beleza e o vazio de um olhar. no mais, mesmo que eu estranhe, talvez tudo seja leite derramado sobre natureza morta. choque e ausência de cor. vento e vertigem. 

se a vida é mesmo bobagem e irrelevância (é?), liberdade e impotência, eu sigo. acho que viver é inspirar e seguir. 

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

SOBRE EQUAÇÕES







algo gravita e se instaura entre dois tempos.  a viagem é escrita e devaneio. é provar ser experimental e incompleto, enquanto resta no chão uma ideia antiga. misturado imiscuido disfarçado ou declarado, o que sobra é saara: pedras e rochas esculpidas pelo vento mais o reflexo do sol que cintila criando miragens (acácias cheias de espinhos são camelos vacilantes vindo em sua direção). no deserto, a única doença endêmica é a loucura. o que sobra é  reinvenção e poesia. 

sábado, 9 de setembro de 2017

SOBRE VAZANTES



FOTOGRAFIA: ASSIS DE MELLO



o movimento caudaloso do rio;
roda dentada do desejo;
anoiteçe e adentra a terra

a metáfora passa a língua
no pescoço que esquiva;
dedilhante e obsceno.

mimese líquida
na sombra do salgueiro;
demoras e
uma vastidão de urgências.

na emboscada,
farpas de medo e redenção; 

um ímpeto na algibeira: 

nos olhos da seca,
labaredas estrilam
um desejo sonâmbulo 
e o espanto: tudo é sangue.

E se fosse atrito ou tempestade?
se fosse concha?
Resvalaria? (Lamberia que nem cachorro do mato?)








segunda-feira, 4 de setembro de 2017

DESVIRULANDO




Fotografia: Assis de Mello



de frente para o que me asculta, sob a lente que me captura, desvendo nos arredores punhados de inexatidão e vida. 

por exemplo:

aceito a ideia da mente como máquina de fazer relevâncias; 

ganhei imunidade nos sobressaltos. 

ainda sigo aberta e precipitada. 

exagero nas cores do que me anima e desarma

dou amplitude aos ossos e músculos que me carregam sob alcunhas diversas.

estou quase em paz. 

sou alguma ferrugem nos nervos, volúpia e aconchego; fertilidade e seca. 

em cada palmo de mim o sol brilha e se apaga

acato flores de cerejeira e revoadas de pássaros.

aceito e acato o que chega e o que vai. 

procuro nas coisas vagas, cadência; mas se for preciso, eu brigo. 

domingo, 27 de agosto de 2017

MADRIGAL MELANCÓLICO






O que eu amo em ti
não é esse jeito de cereja
e esse olhar de seis da tarde
não é essa mania de andar bolerodiando
nem mesmo a tua educadez
O que eu amo em ti
não é essa tua boca de vinho
nem o teu piano. Tocas. E nem é isso.
Os livros que leste, nem mesmo
o que sabes ou não sabes
Não é tampouco o teu ambicionismo
ou teu traço de desenho ou o compasso.
Nem teu andando em lenta marcha vagarosa
nem a doçura, a ternura, a candura,
a loucura, a pura frescura tua de alface...
nem mesmo teu cheiro de alface
teu cheiro de ar com um resto de perfume
nem teu carro (com ar condicionado)
nem teu cachorro
não, não é nem isso que eu amo em ti.

O que eu amo em ti
não é a tua preguiça esticada ao sol
ensombreada de impressionismo
não são os silêncios de que és feito
nem o instante que povoas
ou o mistério que às vezes te povoa,
Não é esse ar letárgico, trágico, trístico,
tanguístico, místico com que te sentas na cadeira
ou acendes um cigarro
somente para por um pouco de fumaça
entre ti mesmo e o mundo

Não é tua voz irônica e sábia
que me preenche os brancos da cabeça
nem mesmo tua cabeça ou tua espiritualidade
ou tua força, tua certeza ou tua fragilidade
Acaso tua beleza? Não, nem é isso.

Nem mesmo o que eu amo em ti
é a tua gargalhada
que transpassa meu ouvido
cheia de espuma e sol de agosto
com gosto de aventura
ou o teu beijo
que cada vez me sabe a uma coisa
mas é sempre tão beijável.

Não é teu jogo de tênis (tão branco de propaganda)
recortado no horizonte,
nem teu corpo plástico, elástico, cheio de fluxos
e de percursos de vibração.
Não é bem isso.

Nessa sucessão constante de agoras
o que eu amo em ti
não é o que refletes de improviso
nem é o inesperável
nem o superalgo

O que eu amo em ti

...são as rugas, meu amor, as rugas...

(poema paródia de Bruna Lombardi sobre o poema Madrigal Melancólico de Manuel Bandeira)

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

DA CALMA E DO SILÊNCIO, de Conceição Evaristo

Fotografia: Clô Zingali


Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na  aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

In Poemas da recordação e outros movimentos. Belo Horizonte: Nandyala, 2008

domingo, 13 de agosto de 2017

NADA

Crônica publicada no jornal A Notícia em 12 de novembro de 2009.


Nada, além de ser o contrário de tudo, a resposta que você dá quando perguntam: “E aí, alguma novidade?” (e você não tem nenhuma), o vazio do espaço (que sabemos que não é vazio), o que tem na caixa de chocolate quando você chega pra pegar e não tem mais nenhum; é também uma carta do tarô.

 Tirar o NADA numa leitura pode gerar decepção. A pessoa paga um tanto pra se consultar com a cartomante ou aguarda horas numa fila pra falar com um guru não sei de onde que promete dar todas as respostas e a carta tirada é o NADA. 
Mas veja, fui fazer uma sondagem e localizei um significado da carta: shunyata. Um equivalente do inglês “nothingness”, que se você esmiuçar: nothing (nada) ness (partícula de negação). A negação do nada? O significado dela, basicamente, é o “tudo” que pode existir potencialmente no “nada”. Esse "tudo" são as possibilidades. O NADA pede um olhar para as coisas que estão ali contidas e que, talvez, não saibamos. Talvez porque, de tão ansiosos em enxergar ali respostas, cegamos e saímos esbofeteando o ar (só pra começar). Um dia um professor meu, falando sobre os mecanismos do estresse, fez uma analogia interessante: “O que é o estressado? O ansioso? É o sujeito que acelera o carro com o freio de mão puxado. Fica lá, injetando combustível, rosnando que nem louco e não sai do lugar.” Ou seja, o sujeito coloca uma energia danada na impotência. Termina o dia cansadíssimo e com sorte não tem uma pane no meio do caminho!

Deixando a carta de lado; a situação de se encontrar num sonoro e retumbante vazio, pode parecer igualmente devastadora. Olhar para os lados, todos eles, e não localizar nada onde se apoiar, não localizar saídas pode desestruturar. É aí, caro leitor, que está a mágica. Nesse escuro, nesse vazio ou nesse nada, é que estão as potencialidades.

Potencialidades são o avesso do nada. Mas, para acessá-las, é preciso mergulhar antes no silêncio que antecede o encontro. É preciso relaxar. Adentrar o silêncio. Respirar, que significa inspirar, expirar. É o que digo: tem de dar chance pro “azar”, certo? E fazer como dizia Dadá Maravilha: “Deixe a bola rolar em campo que ela tem pulmão”.

Temos de abrir espaço para que as possibilidades surjam e você as veja. Porque senão, elas até vêm, mas você não vê, tão louco que está articulando sem parar. E também tem um outro dizer ótimo: “Habian cerrado todas las salidas, però el escapou por uma de las entradas”. É isso. Certas coisas você tem de silenciar para ver.

Por isso, a beleza de se olhar o vazio. O nada. Porque ele pode fazer a conexão com o que há de mais impalpável em você. Com o seu “dentro”. Só nesse estado é possível enxergar potencialidades. Todo o mais são articulações inúteis sobre coisas que nos fogem. E não é preciso o tempo todo correr atrás das coisas. Sério! Na delícia do silêncio, no encontro de você com seu “dentro”, certas coisas caem no seu colo, tocam a campainha. Vamos escutar o vazio?

quarta-feira, 9 de agosto de 2017

ODE ao BALDIO

Ilustração: Eva Armisén


pelo sulco do olho verte uma lágrima. ato ridículo e baldio como carta de amor nunca escrita. uma lágrima furtiva. rútila. apenas para edificar a dor: dar equilíbrio e resistência.

galhofeira, insiste em frente ao espelho; um tanto lânguida (vês?). amarra com arame as lacunas para estar assim: súbita e obscena. 

dedilhante, suprime o ar da palavra faz cardume de desejos em franca apnéia; divide o mar com arraias: heterônima e abandonada. cerzida e voadora.

depois, farpa os espaços por puro capricho. coloca a palavra deserto no meio da palavra água pelo prazer de ver tudo desandar. por delirar vítrea, viscosa e febril. 

sexta-feira, 28 de julho de 2017

SOBRE QUINTAIS



no quintal há abundâncias e abismos,
adjacências e sustos;
em meio a punhados de manjericão e cebolinha, em meio ao que desponta no caminho: bálsamo e perfume, arranhões e palavras:

 palavra empinada
palavra sem rosto
 palavra com dedo em riste;
palavra que flutua
numa tarde qualquer de verão; que faz alvoroço por dentro;

palavra que sobra depois de uma refeição;  palavra com perfume, palavra que abre um vazio;  palavra que faz poesia .

a menina corre para pegar e fugir das palavras que caem. 

sábado, 22 de julho de 2017

AH O AMOR, O TAL AMOR. É MINHA LEI, É MINHA QUESTÃO ;)

Fotografia: Anônimo
Como minha avó, eu poderia dizer que amor é quando, juntos, se come um saco de sal; ou quando de um limão, se faz uma limonada. (mas com ou sem açúcar? ); eu mesma poderia dizer que amor é quando se faz um poema. quando se faz uma canção... quando se canta uma canção, pode ser amor. 

Quintana diz: “O amor é quando a gente mora um no outro”. Danilo Caymmi pergunta “O que é o amor? Onde vai dar? Parece não ter fim. Uma canção cheia de mar que bateu forte em mim”. 

Há quem diga que amor é tirar da própria boca para alimentar alguém, fazer o bem sem olhar a quem. (mas o que é o bem, não é? sabe lá.) Amar é discórdia; e Lacan aponta: “Amor é dar o que não se tem a quem não é”. Acho lindo! (achar lindo acho que é amor).

 Eu amo.Tu amas. Nós amamos. Vós amais. Eles amam. Você ama. Amar é a força do verbo. Alguns dizem que amar é jamais ter que pedir perdão. Outros que amar é sofrer. É rir junto e então olhar dentro do olho do outro, e rir mais ainda. Amar é conviver. Morrer. Ceder. Calar. Passar a bola. Morrer de ciúme. Lavar uma pia cheia de louças. Cozinhar e fazer um cuz-cuz para alguém é amor. Tirar um cisco do rosto de alguém. Um cabelo teimoso que entra na frente do olho. Matar uma barata. Sair de cena. Entrar em cena. Abrir a janela e jogar as tranças depois de escutar "Eu te amo Rapunzel!"

Amar será tomar veneno como os meninos de Shakespeare? Louvar o que reflete no espelho? Amar a dor que se sente? o que faz falta? Lamber a própria ferida é amar. Amar é partir. É ficar. Amar é ficar anônimo. Esconder coisas para alguém achar. (como um anel de brilhantes no meio de uma trufa?, um bilhetinho embaixo da xícara de café?, como esconder a você mesmo atrás da cortina e perguntar para uma criança: cadê?, escrever uma declaração em um outdoor???).  será? amar é não colocar etiqueta. amar é arrancar a etiqueta.

Amar é divagar. É concentrar. É fazer revoar a passarada no meio do caminho. Apreciar o vôo de quem voa. Tremer enquanto o outro voa. Amar é ficar sem palavra na boca. É amar tanto que seca a boca. É andar num metropolitano. É dizer, sou sim soteropolitano! E tu? que me diz, Coriolano? Amar é fazer graça com as coisas. Até com ideia de amar. 

Amar é escrever "eu te amo" na areia da praia pra depois a água do mar lamber e ser testemunha. Amar é testemunhar. Ou não. É descomprometer o outro de ser a sua testemunha. É um grito, de repente, no meio da sala. É colocar as roupas todas na mala e dizer: Adeus. Dizer Ah! Deus! Como eu amo! Amo e vou embora ;) Amo porquê me amo. 

Amar é, diante do tanto que assombra, lembrar do andróide que salva seu caçador em Blade Runner ou cantar de peito aberto o que diz Maria Bethania: “Sonhar, mais um sonho impossível, lutar quando é fácil ceder.... amar é fazer guerras e guerras por um pouco de paz. é cantar com o Rappa: qual a paz que eu não quero conservar para tentar ser feliz?

Amar de todo jeito. Ideias de amor. Ideias de amar. E valem. Amar é não colocar preço. É colocar as cartas na mesa. Manter viva a vontade. Fazer escolhas. Entrar ou sair do barco. Mas lembrar que existem bóias ;) Dizer: Eu vou nadando, sambando, cantando. Vou com você. Apesar de você. Eu vou; e você? Vambora..... Vamoagora... Vem comigo agora, hoje, enquanto a gente se adora 🎵🎵🎵🎵

terça-feira, 18 de julho de 2017

EU SOU ENTRE e DEPOIS





Fotografia: Clô Zingali


pelas fendas, frestas e fissuras, pelos fragmentos de uma ideia; enigmas sobrepostos acendem. 
por isso, e talvez por outra razão qualquer (nem importa);
 sou melodia e desenho. vôo e ritmo.
sou qualquer coisa de verão. qualquer coisa de estação: um aroma bem aqui (sente). sou cor e luz que refrata, apesar das flores no chão;
 o nítido da luz quando espalha e se esparrama entre as coisas: nas ruas por onde passo e até por sobre as águas. por sobre a ondulação.
por isso, e talvez por outra razão qualquer (nem importa); 
refrato. mesmo com a luz assim, torta.
pelas fendas, frestas e fissuras; pelos fragmentos de uma ideia; enigmas sobrepostos acendem
eu sou o que reflete depois da luz. o meio do caminho entre o que se fala e o que se cala. sou o meio.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

PERSPECTIVA SUBLINGUAL



Fotografia: Assis de Mello

espio pelo canto do olho. espio e sibilo diante do espelho e da luz. sibilo debaixo das guelras. diante do reflexo. é anacrônico mais uma vez modelar o barro e o balanço. talvez um gesto anterior à febre. um rubro gesto de queimar. de atear fogo no abismo. só depois vem uma brisa que sopra as labaredas e me faz equivocada. baixinho conjugo verbos manuelinos, e num repente, tomo sem pestanejar, o trem noturno para Lisboa. nada mais de albergue espanhol ou balas de caramelo. o closet passou a língua nas coisas e esvaziou a gaveta debaixo da neblina. é então que aproveito a densidade e me embrenho: escavo, lapido e desvio do que faz medo. entremeios, atravesso e absorvo. pé e perfume no passo. um chão que não sai do lugar. um chão que me anda. me desanda e subtrai o ar, em metonímica  imprecisão.

sábado, 1 de julho de 2017

É JULHO



Resultado de imagem para julho












Os dias julham-se debaixo dos olhos de Isaura.Ela se serve do estio, das chuvas que silenciam por um período enquanto desfia um bordado. Isaura se serve do que não importa: o frio sem razão no interior do país, as perspectivas para o próximo ano ou mesmo a falta de perspectivas para amanhã. É julho; e talvez por ser o meio entre o que há e o que pode haver, o que de olhos arreganhados ela vê, é o tecido de sua pele, trama por trama. Ela desmancha ponto por ponto para restar nua entre o que foi e o que pode ser. Entre a solidez dos escombros. Sabe que a pele e o caminho estão repletos de bordados: desenhos no tecido para se desfiar. Sabe da vida costurada nas paralelas. Bordada em osso e carne. Em fibra e desejo. Dentro do buraco da agulha. Sabe de tudo isso recostada na poltrona de tecido amarelo. De lá gira o dial da vida enquanto aguarda o que quer se fazer morada. Olha pela janela esse pedaço de terra e água que é a soma de infinitas direções trazidas pelos ventos. Abrindo e fechando os olhos, sabe bem o que crepita. A brisa, ao seu tempo, mostra o que importa para Isaura. É talvez com esse impulso que deixa o amarelo da poltrona, vai até a penteadeira e roça de leve a cor do batom em seus lábios. Cantarola uma música qualquer enquanto desliza pelo chão da sala. É julho.

sexta-feira, 23 de junho de 2017

SOBRE FERNÃO


http://www.ijba.com.br/single-post/2015/11/10/Fernão-Capelo-Gaivota
Fonte: IJBA - INSTITUTO JUNGUIANO DA BAHIA

Movimentos do Arqueiro Maior, recentemente, me colocaram na experiência de um voo do qual devo desfrutar pelos dias daqui em diante. Em tempos idos eu já havia lido "Fernão Capelo Gaivota". Do escritor americano Richard Bach, o ano da obra é 1970 e eu devo ter lido lá pela década de 80. Mas olhando daqui confirmo a ideia de haver um tempo certo para leituras fazerem sentido. Se ler Fernão naquela época fez algum sentido lá, eu não me lembro e daí quase concluo que não; ou se sim, o sentido estava soterrado debaixo de meu eu cebola. Enfim. Agora foi diferente. Agora fez muito sentido. E todo dia esse sentido se refaz e amplia. Feito o AmOr.

Quase todos os dias, principalmente naqueles em que caminho na praia, Fernão se recria diante dos meus olhos que o seguem ávidos. Fernão se desdobra em criatura que ama a liberdade e o voo. Um voar desatrelado da ideia de apenas servir à necessidade de buscar alimento. Um voo de desejo que o coloca em processo de solidão nesse mergulho. Uma busca que o distancia do bando e faz emergir sua singularidade na trilha de um caminho solitário.

Um caminho onde vai explorar suas habilidades e descobrir seu tamanho e até onde consegue ir. Vai descobrir seus limites no exercício do real. Fernão vai perceber que os limites podem ser uma ilusão uma vez que muitos nos são impostos. Vai descobrir seu eu através de explorar essa ideia, onde vai romper com os limites que lhe foram impostos pela sociedade a qual pertencia, e que no caso, entre outras, atrelava o voo ao alimento. Sua busca experimenta a ideia de não apenas manter-se vivo e sim encontrar um sentido para a sua existência. 

Nessa saga ele se torna uma gaivota desgarrada do bando para fazer algo a seu modo e com a sua singularidade. Vai viver uma espécie de MatriX no mundo das GaivOtaS, e nesse mergulho Fernão entende que todo o corpo vive no pensamento e que desse lugar é possível quebrar as amarras sociais e partir para uma existência mais liberta onde suas habilidades precisam ser aperfeiçoadas. 

Em seu caminho encontra mestres que lhe ensinam como atingir a excelência na arte de voar com o voo do pensamento. “Para voar à velocidade do pensamento, para onde quer que seja, você deve começar por saber que já chegou...”.  Ou como me disse um dia Agadman, um mestre do entalhe em madeira, um artista,  lá em Prado, na Bahia: "pra ir daqui até qualquer lugar é só girar a maçaneta". E Fernão, de conquista em conquista,  torna-se ele um mestre e segue acompanhado por seus discípulos até o dia de retornar à comunidade que o baniu e mostrar o seu ideário. Nesse processo de retorno, Fernão entende que para ser livre e poder dar significado a tudo que viveu é preciso compreender o antigo bando;  perceber que perdoar é conseguir enxergar a condição de consciência que limita o  outro. Entende que sua missão é usar a sua virtude em favor dos outros. Isso é que dará sentido ao seu existir. Fernão entende, que desconectada do amor,  até a liberdade pode aprisionar.

Claro Que Caminho Pela Praia e admiro as alçadas solitárias e as rasantes desses pássaros. Eles vão e voltam. E voo eu própria pensando em Fernão. Mas confesso, amo perceber essa liberdade atrelada aos voos conjuntos; ora de dois, ora de mais. Amo mais pensar cada uma das gaivotas como Fernão e ainda assim e talvez por isso, vê-los também em bando. Sempre em bando.

terça-feira, 20 de junho de 2017

SEDUÇÃO, de Adélia Prado



http://www.escritas.org/pt/estante/adelia-prado

A poesia me pega com sua roda dentada,
me força a escutar imóvel
o seu discurso esdrúxulo.
Me abraça detrás do muro, levanta
a saia pra eu ver, amorosa e doida.
Acontece a má coisa, eu lhe digo,
também sou filho de Deus,
me deixa desesperar.
Ela responde passando
a língua quente em meu pescoço,
fala pau pra me acalmar,
fala pedra, geometria,
se descuida e fica meiga,
aproveito pra me safar.
Eu corro ela corre mais,
eu grito ela grita mais,
sete demônios mais forte.
Me pega a ponta do pé
e vem até na cabeça,
fazendo sulcos profundos.
É de ferro a roda dentada dela.


Postagem em destaque

SOBRE QUESTÕES RESPIRATÓRIAS E AMORES INVENTADOS

http://metropolitanafm.uol.com.br/novidades/entretenimento/imagens-incriveis-mostram-a-realidade-das-bailarinas-que-voce-nunca-viu...