terça-feira, 31 de dezembro de 2013

TERRA NATAL


Pergunta-se o que é Terra Natal. Escuta dizerem que tal qual o amor, é coisa única. Um só amor. Uma só terra natal. Mariana não pensa assim. Sente-se capaz de abrigar em si muito amor. Amor simultâneo por coisas, cidades e pessoas. Por isso ama Edgar e Rafael. O vestido com estampa de oncinha e os chinelos. Por isso navega nas ruas de tantas cidades e diz: eu nasci aqui. À muitos lugares ela sente pertencer. Lembra-se das aulas de matemática e dos símbolos de  pertence e não pertence... Fundamental é mesmo o amor. E isso não muda. Do que muda, ela escuta o que se avizinha e faz ninho no seu quintal. Ao cair da tarde, vislumbra possibilidades de recriar-se e sair da mesmice. Estamos todos destinados à mesmice! , diz apocalíptica. Dentre as mudanças, ela prefere aquelas que não tecem motivos para acontecer. Aquelas que se interpõem feito tiro – entre o disparo e o alvo. E simplesmente não tem para onde correr. Não há tempo, talvez, para temer. 
Mariana gosta de experimentar desassossegos, cheiros inusitados e rajadas de vento. Sabe que viver é como estar no sofá de uma sala de espera, somente no aguardo da sua vez de entrar. É dar ou receber o diagnóstico. Assinar ou não o contrato e assumir as prestações que nos farão refém ou algoz. Os papéis todos da gaveta espalhados em cima da mesa. Um foco de luz roendo um pedaço do seu chão. Viver é estar no conflito.
Mariana sabe disso e ama cada estrondo. Cada parede que desmorona. Sabe que coragem não é ausência de medo – é o medo mais o desejo de fazer determinada coisa, de superar aquele medo.
Deve ser por isso que toma o avião carregando apenas sua bolsa. Sabe que quando se tem muito a perder não há espaço para pensar. Esse é o caso e ela vai perder cada uma das suas coisas. E vai nascer num outro lugar repleto de coisas outras que vai amar e odiar. Uma outra terra natal.
Feliz 2014 :)

terça-feira, 24 de dezembro de 2013


LUZ E SOMBRA
 
A luz, quando ilumina o que está escuro, propicia a possibilidade de se enxergar. Ao menos, aponta algo. Pode ser forte e ofuscante, às vezes clareando ao ponto de cegar, e pode ser um pontinho bem fraco e suave como vindo de um abajur. Cria clima. Favorece ângulos. Evidencia defeitos. Evidencia a vida como ela é. A luz, entre outras tantas coisas, é fenômeno que propaga energia e potencializa a crença no caminho. Na melhor das hipóteses, favorece e sustenta o passo. O que é iluminado pode também refletir. Que nem a lua. E dentro da imensidão das coisas relativas à luz, uma parte refere-se ao que pode se iluminar enquanto letras formam frases e frases formam ideias e pensamentos vão se tecendo dentro da gente. Quanto mais pensamos, mais vemos o assunto se iluminar e criar perspectivas. Perspectivas são talvez como as lentes fotográficas; filtram o olhar, dão convergência, divergência, distorção, profundidade de campo, mais ou menos foco e outros tantos artifícios que fazem parte do universo de fotógrafos, iluminadores e diretores de imagem. Ao fim voltam para nós e não podemos mais fazer de conta que não vemos... o olhar se abriu :) Mas muita luz também pode confundir; e talvez por isso certas vezes preferimos a sombra. Mas cá entre nós... sombra não é, necessariamente, conforto. A luz é cinematográfica. A sombra também. Ambas alteram a perspectiva e mexem com o imaginário. Escondem, evidenciam, nublam e abrem o olhar de quem olha. E a partir de apenas um olhar, todo um novo jogo de perspectivas pode começar... Jogos da vida. Nesses dias, desejo luz e sombra para todos nós. Perspectivas para descortinar o que se mostra e o que se esconde. Em nós e fora de nós. Eis aí uma das faces do grande mistério que é atuar nos palcos da vida.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

DESENHO NOVEMBRINO



“Se eu fosse desenhar minha vida, pintava você nela me contando uma história qualquer. Atrás, o sol esquentando nossa pele”

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

SOBRE SAQUINHOS



Pensei em ordenar algumas coisas. Separei saquinhos de diferentes mercados: os que traziam estampada a marca (esses uso para o lixo da cozinha) e os menorzinhos que utilizo na lixeira da pia. Os outros, aqueles coloridos e sem nenhuma marca, uso na lixeira do banheiro. Ficam especialmente simpáticos pois contrastam com o azul do piso e as bolinhas brancas e vermelhas da lixeira. Acho estranho quando eu navego por minha casa e penetro nesta ordem tão minha. Quase a me espiar nessa espécie secreta de prazer. Desde cedo desejos e adjacências.

terça-feira, 15 de outubro de 2013

CÊ NÃO IMAGINA A AFLIÇÃO QUE EU SINTO


No vão do que se disse, nas frestas dos silêncios, em meio ao que é inexato, sobram perspectivas... O que tem no vão? O que? Onde é que a batida do tambor ressoa mais? É dentro dele ou da pessoa? Tem pedra que a gente joga e mostra a mão. Tem palavra que só cabe em boca maiúscula.

Por isso adoro pessoas possuídas. Por isso alguém escreveu e depois cantou que quando um homem tem uma mangueira no quintal ele não é goiaba! Quer saber? Mãos, tambor, boca e voz são instrumentos de sentido e razão. O amor? O amor é muito importante, porra!

terça-feira, 8 de outubro de 2013

BALANÇO ATÔMICO-PATOLÓGICO




Sim, sou esquizofrênica. Sou e tenho vários "sintomas co-existentes"... Agitação, variações de humor, insônia, depressão... a lista é grande. Acho que é por isso que tomo tantos medicamentos... e que por isso também a lista dos efeitos secundários adversos dos medicamentos prescritos para esquizofrenia: de diabetes a tremores passando por efeitos secundários também dos medicamentos prescritos para sintomas co-existentes... tem coisa...mas ele disse que tudo está no manual. Basta segui-lo e não se preocupar. O que eu disse? Elementar caro Watson, nada. Eu não discuto com médico. Eu acato. Simples assim. Não gosto de contrariar o doutor. Às vezes, talvez muitas vezes, as pessoas agem de modo malicioso. Aparecem pensamentos estranhos e coisas que até deus põe em dúvida... aliás, deus existe? não sei... Às vezes, quando me perguntam algo, acho que demoro um pouco pra responder... acho estranho responder rápido.  E tem pergunta que choca a gente... aí a gente deita falas e olhares meio vagos... acho que é ação e reação... acho essa ideia bonita pelo menos. Eu tenho um jeito assim um pouco confuso mas Às vezes falo tão bonito... Certas coisas não tem muita explicação. Mas ainda assim são coisas bonitas. Por exemplo, o fato de eu me sentir assim tão despedaçada, de amar tanto e achar que porque amo algo encantado e invisível vira palavra, de achar que porque venta, as palavras espalham cheiro de jasmim... parece estranho. Mas é bonito. Sinto mesmo o cheiro de jasmim algumas vezes! São indícios... Para Alguns. Deve ser por isso também que pinto as unhas de azul, devoro uma nhá benta e compro um porta-guardanapos da coca-cola; deve ser por isso que escrevo e reescrevo um texto mil vezes e outras vezes, num rompante. Na superfície e no que é dentro de mim, cada palavra é coreografada por átomos; cada gesto é permeado de palavras e vítima delas. Entre outras coisas, os átomos se dividem e fazem festa quando não estou em casa. (mas isso eu não disse ao médico).


terça-feira, 1 de outubro de 2013

BURACO DA FECHADURA

ilustração: Estevão Teuber



pela fresta, pelo vão
olho-me nas pontas dos pés:

em meu cheiro
metade;

quem é essa moça nua,
essa outra que me espia
pelo buraco da fechadura?


poema do livro BRICOLAGES para GELADEIRA, 2006.






quarta-feira, 25 de setembro de 2013

AMOR QUE FICA



Entre tantas coisas, uma coisa.  Interação gravitacional. Plutônio + potássio + açúcar comum = bomba, injetar gasolina ou querosene em uma lâmpada e quando você acende = buuum!!! (sim, a onomatopeia é minha). Há também onomatopeias providenciais, um dia especial e talvez um neurologista que não entenda nada de amor. Mas ele pode dizer que, ainda que seja improvável, o recomendável é manter-se isento. Se o constrangimento piora a gagueira, eu não sei absolutamente nada sobre incêndios e preciso, desmedidamente, ganhar tempo antes de declarar o que sinto. Então ele me diz que nossa mente tende a encontrar padrões... Tende? Talvez por isso eu passe lustra-móveis em todas as portas antes do meu amor chegar. Pergunto ao neurologista quanto tempo precisarei para viver entre tantas coisas sem apenas uma? como manter o escrúpulo diante do que me aborda pela porta da frente? Ele sorri e diz que para abrir ou fechar a porta basta girar a maçaneta. Que todo o mais pode ser arbitrário ou adjacente.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

SOL QUE NÃO SE MEXE


Eu escrevo para escavar, relatar e resgatar a dinâmica que algumas coisas podem ter: tempo, duração e sentido. Por exemplo: Na noite mais longa do ano, o sol - ao longo de sua dança ao redor da terra, em um momento específico (sim, tudo tem a hora certa) - faz uma espécie de pausa para depois, lentamente, retomar o caminho de volta. Esse momento funda a noite mais longa do ano e recebe o nome de Solstício, do latim, solis + sistere: “sol que não se mexe”. Talvez, pelo motivo-pausa, esse seja considerado um período de recolhimento. Período onde o que o que é escuro subverte o que é claro; talvez para nos permitir um "chacoalhar" por dentro. Porque coisas e pessoas gravitam para nos alcançar e nos fazer balançar por dentro. 

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

BÁRBARA



Acumulada em devaneios, se olha no espelho. Tira uma a uma as peças de roupa: a blusa última linha da boutique mais cara da cidade, o soutien "eu também tenho peito", o jeans vintage de preço surreal e a bota. Talvez devesse preparar uma mala mínima, comprar uma passagem no cartão de crédito do marido e embarcar parra Macau. Com os olhos amendoados,  permanecer impávida nas cercanias chinesas. 
do livro 40 Possíveis Maneiras de se Descascar uma Mulher, 2008

terça-feira, 10 de setembro de 2013

por uma razão qualquer....
dia qualquer.
um lugar. eu e você.
nós um. (nada qualquer se parece)
você melodia....
eu desenho...
uma partitura. uma escala de tons.
qualquer coisa de setembro insiste; apesar das flores no chão,
apesar do aroma bem aqui (sente).
digo qualquer coisa,
 te tirando da testa uns fios de cabelo; num roçar de mãos num dia qualquer,
nos lábios debaixo de um dia de sol qualquer;
e nos olhos depois, numa noite de pizza qualquer.

 (nesse lugar),
nós um. (nada qualquer se parece)

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Ladeando o que pode ser ter 50 anos, penso sobre princípios de aerodinâmica e combustão. Gisele, uma amiga toda afeita em pequenas magias e coisas transcendentais escuta meu desabafo: “Gi, preciso de uma garrafada! Aloe vera e formol juntos será que me adiantam? Resolvem meus problemas?” Gargalhamos juntas. Gisele diz que para quase todas as coisas, precisamos apenas de dois dias. Não tem quaisquaisquais;
seja para iniciar um regime, cair na esbórnia, aceitar ou não uma proposta, mudar a vida em tudo ou em nada: Uma cesta de métodos mais dois dias de concentração e tudo se resolve. Não vai ter aloe vera que faça páreo! Quanto ao formol, nem pensar, não é? Por acaso você deseja, aí bem no seu fundinho, estacionar esse estado de coisas ou qualquer outro? O movimento rejuvenesce, amiga! Sei bem que os fios soltos existirão apesar de algumas certezas e palavras de conforto. Palavras rede que agora me parecem aprisionamento diante da fome e do existir borboleta... um modo de existir que parece pétala, parece flor que dança com o vento. Harmonia delicada entre a força que impulsiona as asas para um voo e um viver que é tão fugaz. Um estado de fenômeno levado às últimas consequências. Feito sopro de hálito quente que precipita a transformação da lagarta em borboleta. Penso se são desajustes hormonais ou apenas um tempo de intensidades.  Seja como for, se o tempo não pode ser revertido, a mudança cabe no oco da mão e espera, sorrateira, por sopros de ar quente. 

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

FUMEGAÇÕES AGOSTINAS




Abaixo do que é a superfície de mim, sinto algo fumegando... Galeno poderia dizer que é esquizofrenia; porque não? Afinal, alguém já disse que Haloperidol deixa a alma dormente. (a fumegação, é então, um revertério?). De qualquer modo, escrever transforma o que é invisível em palavra. Quando é possível gotejar com encantamento essa palavra; ela então se desdobra e pode contaminar. Feito aroma que entra pelas narinas, passa pelo coração e segue ao cérebro. Ou seria o contrário? Seja como for, as palavras podem ter cheiro. Cheiro de jasmim, por exemplo. Quando as palavras tem cheiro de jasmim, sorvê-las é como participar de uma dança. Uma coreografia se forma no espaço e quando se abre ou fecha os olhos, se vê flor. Me pergunto se isso é igual ao inverso dessa equação: por exemplo, quando eu vejo flores em alguém e então sinto cheiro de jasmim. O que fumega quando a alma está desperta? O quê?

segunda-feira, 26 de agosto de 2013





Não importa se é pelo direito ou avesso
que se vai usar a velha calça jeans:
No caminho,
a alma aproveita da trilha para ser matéria.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

COISAS VERMELHAS


Quero falar de coisas vermelhas para, juntos, imaginarmos sem moderação. Se a imaginação é um ato vermelho, significações e simbologias, quando vermelhas, não ficam omitidas. A fraternidade é vermelha, a paixão (inclusive quando não correspondida) é vermelha. A boca e a língua depois de comer cerejas, também. Ficam ainda mais vermelhas. Campari, quando cai na roupa. As gotas que escorrem num pacto de sangue. A árvore, quando você corta seu tronco, escorre um líquido que é vermelho. Arnaldo Antunes diz em uma canção, lindamente, que o corpo, se cortado, espirra um líquido vermelho. O sinal de PARE. Vermelho. A flor detrás da orelha da espanhola que dança. O sorriso dela é vermelho. O tango também é. Ela e ele: puro vermelho, puro sangue. Luiz Melodia canta vermelho. O corte na pele e o calor das mãos quando se tocam é vermelho. As flores, um dia, em uma camisa. O “não” que se interpõe feito bala em uma via só de sim. Coisa muito vermelha. Certas músicas ou um poema que alguém diz para você, ou mesmo a tinta com que se escreve certos poemas. Tinta de vida e morte. A cor que eu não disse quando perguntaram qual era minha cor predileta. O som de uma voz. O miolo do abacate lá dentro. Morango. As hemácias, a primeira cor do arco íris, a roupa do papai Noel.  Tudo vermelho. A frase que eu não disse. A que ele pensou e também não disse. O que se disse. O pen drive que meu pai um dia me deu. Visita sem avisar. Susto. Tapa na cara. Boca depois do beijo. Olho depois do beijo. Vermelho. O texto que estava pronto e eu deletei sem querer e de modo definitivo é vermelho. As lágrimas que se derramam e também as que se contêm. Copiosamente vermelhas. O primeiro gesto de ousadia de alguém. Pimentas dentro de um vidro. Fome, angústia e a vontade. Driblar a vontade também é vermelho. Uma nota zero. O fogo que por vezes reverbera dentro dos olhos. Uma noite inteira em claro é vermelha. Acordar no meio dela também. Bater nua, na porta de alguém, às 3 da manhã. Absolutamente vermelho. Peixe na brasa numa praia deserta, alecrim por cima. O peixe é o Vermelho. O peixe Vermelho é vermelho. Comer peixe numa praia deserta também. A cor que não coloquei na tatuagem e o que escorreu dela enquanto o bisturi tocava a pele. Vermelho. Coisas que escolhemos não viver podem ou não ser vermelhas. O coração pulsando na mão do cirurgião é vermelho. O tapete que a gente estende quando se apaixona. O motim que pode haver numa troca de olhar ou a marca de uma mordida são coisas deliciosamente vermelhas. Dolorosamente vermelhas? Também pode ser. Segundo a teoria dos tipos, o conjunto das coisas vermelhas é uma coisa vermelha. As coisas enquanto queimam na fogueira são vermelhas. O desejo, e o molho ao sugo do macarrão. O ódio. Um telefonema no meio da madrugada. Vermelho. O que se faz pensando em alguém, e que transparece expondo vértebras e medo. O medo é vermelho. Já o medo do medo e o sorriso amarelo; estes não cabem aqui.

sábado, 17 de agosto de 2013

O FOTÓGRAFO


Eu fotografo ideias e projetos para ver as estórias. Para capturar e interpretar o momento. É então que a imagem é bandeira que defendo; argumento que apresento. Se a vida é um evento, eu fotografo para conservar. Para guardar.  Feito poema onde guardo o que é primeiro plano e também o plano de fundo. Desarticulo para ver mais a gravidade da cena. E de novo interpreto. No fundo, sou contador de estórias. Sou contador e fotografo para guardar. Ontem, por exemplo, a vazante de águas raras e claras eram como janelas no manguezal; e eu interpretei a dinâmica da seca e da cheia naquele poema. Feito mata ciliar, o que distancia e protege também põe em contato; provoca o conflito e o argumento; e então sou escrevinhador e espécie entre as espécies que fotografo.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

DESAMBIGUAR




Eu gosto de misturar palavras. Fazer frases com elas e depois misturar estas frases: afirmativas, negativas, exclamativas! Adoro lançar perguntas e criar enigmas. Acho que isso é uma forma de ser perversa. De fazer sacanagem com as palavras. Isso sem contar o que faço depois: lavo, torço, encero, faço bola de meia e às vezes, chuto para pensar em outras palavras. Me sinto volúvel nessas ocasiões. Por vezes também sou sucateira: eu reivento. Coloco de molho no amaciante. Eu nino algumas palavras e deve ser por isso que um amigo me disse que elas ganham magia. Seja como for, depois disso tudo eu levo palavras e frases para roda de samba e faço batucada com elas. Elas dançam nas misturas que faço e vão criando ideias novas, ideias subversivas, ideias que me deixam arrepiada. Então eu corro para o espelho e as proclamo em voz alta. Se fazem sentido para mim ao escutar, elas sobrevivem. É sinal que envelheceram no carvalho, criaram vincos, sulcos e adjacências; caso contrário eu as demito absolutamente. Eu deleto. Deletar é um verbo que extermina ações passadas, boas ou más. Por isso o verbo deletar pode parecer deletério. Mas talvez não. Se sou ou não cigana, a mudança mora em mim. O transitório mora em mim. E é por isso que não quero nem anel de diamante, nem nada: eu quero a dança do uirapuru. Um pássaro com plumagem em tons de terracota que vive em florestas úmidas. O som de seu canto enquanto constroi o ninho para atrair uma fêmea, parece com flauta ou violino (depende de quem ouve), e dizem, pasmem, que levar consigo o uirapuru empalhado traz sorte na vida e no amor, e que por isso o mesmo se encontra ameaçado de extinção. Se faz de um tudo por amor... É nesse embalo musical e dançante de seu bater de asas que o pássaro conquista suas parceiras e transforma a floresta em cena de romance. Isso tudo é DNA perfeitamente  compatível comigo. O desassossego e a inconstância me fazem múltipla e mesmo que minha preguiça continue praticamente inviolável, pelo que pode haver de permeabilidade nela, eu acato o que avassala, o que está inacabado e pede exploração. O amor que sinto, por erro ou ambiguidade, tem diferentes significados. Por ser assim, de certo modo, homônimo, apresenta aspectos muito distintos de serem explorados. Eu quis explorar isso. Explorá-lo. Segundo o dicionário eu quis “Desambiguar”; que significa que se uma parte dele é muito mais conhecida ou muito mais importante que outra ou que a soma de outras partes, tem de haver um caminho específico para esse entendimento. Eu resolvi fazer essa desambiguação com o amor que sinto. Estou pesquisando, mas nada de conclusivo. Está ótimo. Como diz Lenine: “eu gosto é do inacabado, do imperfeito...”. Eu gosto é do processo. E como já se disse uma vez, das rugas, meu amor, das rugas.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

MATÉRIA SEM CULPA



Capto a vida através de instrumentos. Mergulho em diferentes águas e pinço toda sorte de objetos: flutuantes, evanescentes, com mais ou menos contraste entre eles e a água. O critério segue o visgo dentro do olhar. Só o visgo. Ainda assim são objetos fugidios e, através deles, palmilho e desvendo. Depois percorro a orla com os pés descalços. Orla e órbita. Tropeçando em pequenos crustáceos, eu desvelo. Sangro no perímetro das coisas que tem textura, aroma e intensidades. Desenho nós dois sentados na areia. Sentados na beira em volta do buraco. Em volta da beira e da probabilidade. Da possibilidade. Às vezes é como gravidade: Não dá para negociar. Fóssil sem corpo. Afinal, quem dorme com cães, não necessariamente vai acordar com pulgas. Além disso, diante da tv, vejo tudo que pode haver de submerso em Moçambique, e que apenas três moças, antes dos 30 anos, podem desvendar e desvelar em rede para o mundo. Assim eu descubro o que pode haver no fundo só com o visgo do olhar. Sem sair do sofá vou explorando a densidade da água, escuto jubartes cantando e procurando o calor em águas africanas, fico sob o pôr de sol alaranjado capturado por alguém. Faço parte da cena. Do ocaso. Se não é verdade, a ideia serve de cola para que eu possa parar de pé. No mais, às vezes, tudo que se precisa é mudar de lugar. Uma palavra que salte também dá jeito. Palavra vôo, por exemplo, palavra verbo e conjugada no imperativo do desejo para descansar do conforto de outras: palavra rede, palavra almofada, palavra colchão. Eu voo. Qualquer coisa no baixo abdômen faz pressão. O desejo exerce pressão: até a palavra exerce. Uma palavra estranha - um x com som de z - que se tem que engolir como regra. Pressão também diz respeito à minas. Detonam. Tudo vai pelos ares. Roupas dentro do armário, pedaços de papel e tampas de bueiro. Pressão expulsa. Manda para o espaço o que estava encalacrado. No mais, não se tocam as efemeridades. Não se seguram os vendavais. E, felicidade não precisa de culpa. Ao fim e ao cabo, diz Tom Zé: mando a consciência junto com os lençóis para a lavanderia. 

segunda-feira, 22 de julho de 2013

CRÔNIQUETA DE JULHO




De novo é julho. É julho e talvez não importe o que eu poderia falar: as chuvas que não cessam, o frio lá do norte, as perspectivas para o próximo ano ou mesmo para amanhã. É julho; e talvez por ser o meio entre o que há e o que pode haver, o que vejo de olhos arreganhados é o tecido que cobre minha pele e eu quero desmanchar. Trama por trama para estar nua entre o que foi e o que pode ser. Entre os escombros. Tudo quer voltar. Até os passos que não dei aos 2 anos. As mãos nas cordas do violão que meu pai tanto queria que eu tocasse. As linhas me trouxeram até aqui. Estou dentro delas. Dentro das cordas do violão. Dentro dos fios que fazem a trama do tecido e da minha pele e que seguem ao infinito.  O caminho é cheio de bordados: desenhos no tecido que eu tenho que desfiar. Estou costurada nas paralelas. Bordada em osso e carne. Em fibra e desejo. Dentro do buraco da agulha. Sinto no ar um perfume. meu cheiro? Um perfume de begônias Quem é  essa mulher toda nua? essa que me espia enquanto enfia e retira a agulha do tecido?   



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SOBRE QUESTÕES RESPIRATÓRIAS E AMORES INVENTADOS

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