quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

FRACTAIS E ROTINA
Maria da Penha, que concluiu seu curso de matemática em 1991, adora brócolis. E não é só para comer. O que Maria gosta, sobretudo, é a forma como ele se apresenta. Um maço verde de flores verdes. Flores de brócolis. Gostava muito quando via sua mãe prepará-lo para o almoço do sábado depois da feira. O maço por cima das outras coisas. Todo o cuidado para não amassar. Despetalava com cuidado separando os pequenos buquês. Colocava-os debaixo da água corrente e depois numa imersão de água e vinagre. Depois iam para o vapor por 2 a 5 minutinhos para ficarem “al dente” e salteava-os em alho e óleo. Acha que sente esse perfume agora adentrando a janela da cozinha. Será sua lembrança ou o vizinho? Torna para o maço de brócolis em suas mãos e se lembra das aulas do professor Aurélio: um bom exemplo de fractal é o brócolis. Fractal vem do latim “fractus” que quer dizer fragmentado, fracionado. A parte está no todo e o todo está na parte. Como as células que contém a nossa história.  As principais características dos fractais são: Extensão infinita dos limites; Permeabilidade dos limites e Auto-similaridade das formas e características. É um olhar qualitativo sobre as coisas. Agora ela torna de novo ao cheiro que entra pela janela. É realmente o vizinho quem cozinha. Será que está preparando espaguetti ao alho e óleo? Pensa que se fosse brócolis, teria sentido o cheiro do cozimento. A parte ruim do preparo. Já cruzaram seus olhares algumas vezes desde que mudou para o prédio. Outro dia subiram juntos no elevador quando ele voltava do mercado. Na boca da sacola um maço de brócolis chamou a atenção de Maria. A verdura chamou a conversa. Chamou o olhar que se estendeu até ele saltar. Torna para o maço em suas mãos. A rotina é uma sucessão de momentos que se repetem e compõe o todo que é a vida. Como cada flor de brócolis compõe o maço. E o resultado do maço todo, que é o conjunto das partes, é igual a cada flor. E forma um desenho. Como a vida. Pensa que olhando desse jeito a rotina ganha dimensão. A rotina é um fractal. Ri. Todas as vezes que encontrou com Vítor no prédio são partes de um encontro que se ensaia. E agora ele está na cozinha. Espaguetti ao alho e óleo combina perfeitamente com brócolis. Assim como ele combina com ela e os dois combinam com brócolis. Num átimo suspende da mesa com o maço nas mãos. É um buquê. Atravessa a sala, a porta e o hall. Desce um andar pelas escadas e encosta o dedo na campainha do 304. Quando Vítor abre a porta ela está com o coração na boca e o buquê nas mãos. Ele sorri. Ela sorri. Exatamente como se olhasse um fractal, confere a unidade de medida contida no largo do sorriso dele que se espelha no canto da boca. Quase enxerga o infinito. Percebe a permeabilidade dos limites e o intercâmbio de dados. Observa a semelhança nas formas e características. Fraciona o sorriso e vê a semelhança de cada parte que se estende na boca e toca nela. Lembra Anaxágoras: “mesmo na menor das partes existe um pouco de tudo”. Existe vida. O todo é a soma das partes. Ou não. De qualquer forma, tudo isso faz parte dessa história. Que começou antes e agora atravessa a soleira pelas mãos dele. Eu que nem sabia disso tudo, estou aqui a sentir o aroma que vem do 304. E talvez por isso, pego as chaves do carro e me dirijo ao mercado. Uma súbita vontade de apreciar brócolis, fractais e vida.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

PESSOAS E CRIATURAS

Ciro, olhando bem nos olhos de Adamastor, diz: Ora, ora... para dormir, meu senhor, é preciso apenas, ter sono. Consciência limpa? Tá... Essa é a ideia de felicidade de quem a possui. Só pra quem tem a consciência limpa isso importa. E saiba: são esses mesmos que perdem o sono enquanto os outros são agraciados pelos braços de Morfeu.

Liz admite que tudo é poesia. E ela poema o que transparece aos olhos dos outros. Escreve e pensa: Se ele viesse até mim, de que maneira seria? Telefonaria avisando? Irromperia virando a chave da porta? Não me importa. Estou pronta. Por mais que me custe não custa mais do que resignar-me.

Janaína pula as ondas do mar e oferece uma flor para Iemanjá. Que minha vida seja algo como meus cabelos. Um alvoroçado que permeia e conforma. E quando me dizem que estou diferente, eu digo: É que estou grávida. Estou prenha. Sou bicho que carrega um bicho dentro. A vida é um salto e o encaracolado é minha forma de estar doente.

Pedro diz que o sentimento que traz essa noite no peito é feito cachorro do mato acossado, bicho perseguido no encalço. Ele se submete à caçada com a única perspectiva de ser devorado. Absorve a adrenalina de estar prestes a ser engolido. E se precipita. Incita o predador. É uma forma de suicídio que eu desejo, ele diz.
 
Indira escreve poemas mergulhada e banhada de ausência. Dessa vez eu voltei para ficar até o final. Eu sempre tive que desaparecer subitamente. Agora eu descosturei os pontos que deram para mim. Costuras inteiras. Bordados com as mais ricas tramas. Conforme eu descosturava e soltava os pontos, lá onde o tecido é a trama que o fez, eu ia me vendo, célula por célula. Eu ia aprendendo a encaixar meu desejo no desejo do momento. Sei uma a uma as várias que sou. Os detalhes. Eu saco as mulheres de mim. Arranco. Eu preciso explicar que não se trata de falsidade? Eu preciso. Não é falsidade.

Adriana tenta em vão recolher as roupas do varal que ameaçam alçar vôo pelo feio da tempestade que se arma, e diz: eu tento segurar e livrar as roupas da tempestade. Eu tento segurá-las. Tento me segurar por que as coisas ventam em mim. Ventam.

Jéssica sonha dias de sol e não preocupações. Alinhava cuidadosamente seus afazeres e regorjita o que não transpassa. Tem estofo para mais dois meses. Os bolsos da casaca quase vazios e tantas contas ainda para acertar. Pensa nos truques que traz na cartola (devem andar a pensar que já não sou capaz de trazer mais novidades). Mas ainda pulsam nela devires. Todas as noites uma piada nova, sorrisos que ainda surpreendem. Jéssica traz tanto em si que desliza. Pensa se no fundo há algum estremecimento. Um medo que as luzes se apaguem. Que não haja aplausos no final. Nem todo o porvir.

Pois é, leitor. Eu pouco sei do que se impõe e me atravessa e divido isso com Dona Didi, uma amiga querida de Fortaleza. Sabiamente, ela diz que “Assim como são as pessoas, são as criaturas.” Arremata com um “Perfeitamente”. Perfeitamente, eu repito.

domingo, 2 de janeiro de 2011

FELIPA E O FIM DO ANO
Felipa está de aniversário. No dia 30 de dezembro, um dia antes do último dia do ano, ela muda sua idade e sua vida. Todo ano assim. Moça cheia de simbologias que é, desde cedo decidiu que essa era uma data para transformações. E diz: sempre, a cada fim de ano, tenho dois motivos para mudar. Duas razões. Pensa que motivo é coisa de menor importância. Razão é a preponderância de algo sobre ela. Pensa em maçãs. Em Adão e Eva. E na serpente. Escapa das contingências e torna à maçã. Que alivia dores de estômago. A maçã do amor. O afrodisíaco da fruta. Seu casamento atingiu a maioridade e ela pensa no ridículo disso. Afinal, maioridade não vem com data marcada. Aliás, nada. Mas é simbologia de novo. De todo modo Felipa sabe que a maioridade vem quando se investe nela. Percebe pequenas mudanças. Agrega coisas. Manda coisas embora. Dribla asteróides que caem por cima. Ela às vezes se recupera de bombas e coquetéis molotov e pensa o quanto a convivência é uma espécie de mistério. Tudo que se troca. Pensa em Quintana dizendo “Amor é quando a gente mora um no outro”. Ela nem sempre sabe ser sábia assim. Teme e teme a não existência de garantias. Para nada. Sabe que nada é para sempre. Sabe? Logo já vai dando um jeito de reordenar o pensamento que lhe escapa. Tem medo da ideia de que nada é para sempre. Mas o que é pra sempre? Cada fase sua dura um ano e logo vem o aniversário e o ano seguinte pedindo-lhe que seja outra, que esteja em outro lugar, que viva outra. Tem coisas que são para sempre, não tem? Duvida. Acredita que para sempre é enquanto se quer e se trabalha as coisas. Modificando, criando novas tramas para se enrolar. Aprendeu a olhar o em volta bem de perto e sem ansiedade. Se continuar assim vou existir “para sempre”. Ou até quando Deus quiser. Até quando eu acreditar. Assim é o para sempre. Tudo isso porque a vida é uma obra e Felipa constrói e pinta sua arte. Tijolo por tijolo e as cores na palheta. Pincela daqui e dali e vai construindo a vida que é dela. Põe um tanto de azul e desenha um infinito. Põe amarelo, laranja e vermelho e tem um sol sem tamanho que lhe doura e aquece. Ponto por ponto ela desenha e pinta. Constrói, reforma e faz pequenos ajustes. Só não gosta de quebrar paredes. Elas existem, afinal. Então vai dando possibilidades de serem mais. Felipa sabe que paredes podem sempre mais. Para a mudança deste ano preparou algo que a está surpreendendo. Mandou instalar na parede da sala pinos de escalada. Começam na parte inferior e vão subindo até atingir a parede perpendicular, onde está o aparador com a travessa de morangos frescos, e dali para o teto. Felipa olha os pinos e olha para seus pés com sapatilhas especiais para escalar. Usa também uma roupa própria, preta e colada ao corpo. Preta. Esse fim de ano serei gata. Mulher-gata. A meia-noite desliga todas as lâmpadas deixando apenas o pisca da árvore de natal. Coloca as luvas e inicia a subida. Concentrada. Pino por pino ela sobe. Atravessa a primeira parede e depois a outra. A da perpendicular. Prepara-se então para adentrar os 90 graus do teto e esborracha-se no pufe marrom. Ri uma sonora gargalhada.

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SOBRE QUESTÕES RESPIRATÓRIAS E AMORES INVENTADOS

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